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Felicidade Clandestina – Liah Albuquerque

Crônica

Felicidade Clandestina – Liah Albuquerque

(arte: Louveira.com.br / gerada por I.A.)

Felicidade Clandestina é uma homenagem ao conto homônimo de Clarice Lispector, que serviu de inspiração para esta crônica

Felicidade Clandestina1

por Liah Albuquerque

Li muitos livros na vida, mas não tantos quanto eu queria. A falta de acesso na minha época me restringia aos livros que tinha na estante de casa. Por sorte, eram muitos. E contei também com outra família que adorava livros e me emprestava vários títulos. Era uma felicidade só! Fato é que pouco se emprestava livros, porque eles quase nunca voltavam ao seu dono. Eu devolvia todos, mas já perdi tantos! Depois disso, particularmente, dificilmente empresto os meus. Hoje em dia, restrinjo- me a emprestá-los apenas à minha filha. Foram muitas as perdas (e não só os livros se perderam…), mas isso fica para outra história.

Outro dia, recebi a visita de uma amiga querida, das Letras. Ela apresentou-me um canal de podcast que trazia uma entrevista rara com Clarice. Sim. A nossa Clarice: Clarice Lispector, uma das mulheres inspiradoras de meu primeiro romance, que comecei a escrever logo após assistir a uma entrevista dela no YouTube. Havia similaridades entre nós que eu não imaginava existir (quanta pretensão a minha, não é?). Eu sabia tão pouco dela… Queria mais. Queria tê-la conhecido, ter podido conversar com ela, ter vivido em sua época (essas coisas de quando a gente admira alguém). A vontade de ler seus livros foi crescendo e crescendo, até que não pude mais esperar. Só havia lido Água Viva e alguns poucos escritos pela internet.

Para minha surpresa, algo aconteceu. E foi no Dia Nacional do Livro! Entrei no maior site da atualidade para compra de livros. Bati o olho em uma capa que achei extraordinária — mal sabia eu que aquela arte havia sido pintada por ninguém menos que ela (ah, Clarice… para quem se julgava ser apenas uma simples dona de casa…).

Já que eu queria conhecê-la um pouco mais, escolhi Clarice, uma biografia, escrita por Benjamin Moser. Não. Eu não estava satisfeita. Aquela capa não saía da minha cabeça. Queria me aventurar em suas obras. Escolhi Felicidade Clandestina. Mas… havia outro livro. Eu não podia deixar escapar aquele momento. Estava em êxtase! Determinada a trazê-la mais para perto de mim, cliquei também em A Hora da Estrela e fui direto para o carrinho para finalizar minha compra e não ir além de minhas posses (quando se trata de livros, é fácil extrapolar). Prazo de entrega: no dia seguinte!

Eu não vivia, eu nadava de vagar num mar suave! Acordei com uma felicidade fora da normalidade. Fiz o café, acendi um cigarro e fiquei imaginando como eu gostaria de ter um cantinho especial para ler os meus livros. Não queria simplesmente sentar-me numa cadeira, num sofá ou na cama, abrir o livro e pronto. Queria realizar um sonho! Um sonho tão pequeno que nem sei por que nunca o havia colocado em prática: um cantinho, uma poltrona com apoio para os braços e para os pés, uma luminária ao lado, uma mesinha contendo os protagonistas do meu sonho: livros e mais livros.

O que não contei até agora é que esse sonho foi resgatado um dia antes (no mesmo dia da compra dos livros). Liguei para minha filha, que estava na casa de seu pai, mais precisamente no quarto de sua irmã. Estávamos conversando por vídeo e, ao fundo, uma estante chamava minha atenção. Os livros estavam dispostos com precisão, alinhados impecavelmente. Boxes e mais boxes de livros, outros aleatórios, muitos livros coloridos. A irmã de minha filha é uma devoradora de livros; uma jovem apaixonada por livros. Alguém que desde menina junta a mesada para comprar livros, que pede livros de presente em datas comemorativas, que vai a sebos e livrarias para apreciar aqueles belos exemplares. Não resisti. Tive que comentar sobre aquela estante belíssima aos olhos de qualquer amante de livros. E minha filha respondeu: E ela leu todos! Não são só enfeites! Imagina ouvir isso?! Não. Não era consumismo. Não era para ostentar nada. Não era para fazer bonito! Para alguém que nasceu nos tempos atuais, onde o mundo virtual toma conta de tudo, uma jovem de aproximadamente 16 anos colecionar e ler livros desde pequena não é algo comum. A gente se emociona. O amor pelos livros conecta gerações! Eu, acostumada a trabalhar com livros, ler livros de novos autores todo dia, revisar textos, criar capas, deparei-me com aquela chama. A chama de querer realizar um sonho! Como eu disse, um sonho bem simples! E foi uma jovem que trouxe essa vontade à tona.

Coloquei-me a postos. Fui para a copa com meu notebook, para aguardar a chegada de minha encomenda. Adiantei meu trabalho e no começo da tarde tive um tempo vago. Era hora de dar um jeito de arrumar meu quarto para dar espaço a uma poltrona, aos meus poucos livros, à luminária… Quando decidi fazer isso, ouvi alguém no portão gritando: Entrega! Saí em disparada para receber aquele pacote tão esperado. Com uma tesoura, abri-o com cuidado. Três livros novos. Dela (e sobre ela). Fiquei um bom tempo olhando para eles. Era um momento mágico! Peguei a vassoura, a pá, a poltrona que ficava à toa na copa e corri para o quarto. Ajeita daqui, ajeita dali… e não é que deu certo?

Mas, quem gostou mesmo da poltrona no quarto foi minha gata. Tomou posse! Eu olhei bem para ela e disse: Tudo bem… você pode ficar aí o dia todo, mas à noite esse cantinho será meu! Ela me fitou com aqueles olhos amarelos — como a desaprovar o combinado —, com o olhar de desdém natural dos gatos.

Fiquei protelando. A hora de sentar-me para desbravar os livros novos tinha que ser especial. Não poderia ser uma hora qualquer. Tomei um banho, coloquei meu pijama e fiz um café, esperando tomá-lo lendo o livro. Só me esqueci de uma coisa: não fumo no quarto. E toca eu ir para a varanda com a xícara ainda cheia, pensando em como seria bom se eu pudesse estar naquele meu cantinho. Quase me arrependi de ter feito o café (e de ter o hábito de fumar)…

Ao abrir a porta do quarto, a gata estava lá. Na minha poltrona. Ela não gosta de colo, então fui me sentando devagarinho para ver se, quem sabe, conseguiria que ela aproveitasse comigo aquele espaço. Qual nada! Ela ficou brava! Desceu dali, mordeu minha perna, subiu por detrás da poltrona para alcançar meus cabelos, usou as garras para arranhar as laterais daquele novo móvel, saiu correndo para todos os lados e, quando viu que não tinha jeito, que havia perdido a vez, pulou na escrivaninha e preparou um salto até a janela, onde há uma caminha só dela. Aquietou- se e virou-se de costas para mim: outro sinal de desaprovação por eu ter roubado “seu cantinho”.

Só então pude escolher qual livro ler primeiro: Felicidade Clandestina. Abri-o devagar, saboreando sua diagramação impecável, até chegar ao sumário. Começaria do começo. Ao ler o primeiro conto, que deu origem ao nome do livro, fui percebendo que aquela menina do conto era eu. Ela queria ler livros, mas sua condição não permitia que tivesse acesso a todos os que queria. Ela sonhava em ler As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Eu, só queria “devorar” Clarice. A menina ficou esperando o dia em que conseguiria tê-lo em mãos. Eu também. Ela queria um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o… Pois então!

Quando conseguiu realizar seu sonho, a menina fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. […] Horas depois abriu-o, leu algumas linhas maravilhosas, fechou-o de novo, foi passear pela casa, adiou ainda mais[…] criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Todo o meu movimento estava ali. Naquelas linhas, escritas por Clarice. Fechei o livro. Não queria ir para o próximo conto. A menina foi comer um pão com manteiga; eu também, apesar da hora. Queria prolongar minha felicidade clandestina.

Mas confesso que Clarice não permite que eu ande tão devagar quanto aquela menina. Ela me cutuca. Ela me provoca. Ouço sua voz a me chamar. Fico esperando a hora passar só para poder me sentar novamente naquela poltrona. Meu peito (ainda) está quente e meu coração pensativo. Sim. Está na hora de ler o próximo conto, já que aquela Amizade Sincera me espera (e aquele outro pão com manteiga pode ficar pra depois).

  1. O título, “Felicidade Clandestina”, é uma homenagem ao conto homônimo de Clarice Lispector, que me inspirou a escrever esta crônica. Algumas frases em itálico representam pequenos trechos de sua obra, como uma conversa com a autora. ↩︎

Liah Albuquerque – Biografia

Liah Albuquerque - ALLA

Paulistana, filha de um jornalista visionário e de uma pianista, sempre esteve imersa nas artes. A leitura fazia parte do seu cotidiano, assim como as cordas do violão e do contrabaixo, que a acompanharam ao longo da vida.
CEO da Editora Versum, publicou em 2020 Cotidiano (poemas e prosas poéticas) e Poemas Tagarelas, uma obra voltada para o público infantil, onde transformou alguns poemas em cantigas. Esse livro ganhou o incentivo da Lei Paulo Gustavo (2023), foi reeditado e, em 2024, distribuído nas escolas e creches municipais de Louveira (SP), acompanhado por sessões de contação de histórias com sua personagem, a Palhaça Tagarela, inspirada em sua experiência no teatro. Participou de diversas antologias e, em 2022, lançou Sem Papas na Língua, obra que concorreu ao 65º Prêmio Jabuti. Atualmente, ocupa a cadeira nº 7 da Academia Louveirense de Letras e Artes, tendo como patrono Mario Quintana. Cartas que Nunca Chegaram ao Destinatário, publicado em 2024, será lançado em 2025, marcando sua estreia no gênero romance.

Contato – e-mail: : editoraversum@gmail.com | WhatsApp: (13) 99797-9458

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